O Poder da Arte. Ontem à noite, nos corredores da Assembleia da República.
Cena 1.
Dois jovens. Trendy q.b, curiosos, Proust debaixo do braço.
“Por exemplo este quadro. Podes chamar isto arte? O que é que isto tem de bonito?”
“Ora...eu gosto, sei lá”
“Não respondas que gostas. Claro que gostas! Toda a gente gosta. É uma tela pintada, uniformemente, de côr-de-laranja. Não tem nada para se desgostar. Mas explica-me: porque é que isto é arte?”
Cena 2.
Três empregadas da limpeza e o vigilante dos outrora sossegados caminhos da AR.
Olham desdenhosas e sussurram comprometidos.
“Eh lá, isto há com cada “arte” por aqui. Digo-te já, é com cada coisa mai linda...”, disse uma.
“E tu ainda não viste nada!”, retorquiu a outra.
“Vocês se se querem rir, vão lá abaixo. Valha-me Deus nosso senhor! Nunca vi coisas tão feias em toda a minha vida.”
Dirigem-se, então, a um quadro (cujo Autor não me recordo), onde figurava uma mulher nua em cima de um touro.
“Oh Zé!, grita a terceira, “Olha lá este. Finalmente aqui está um que eu percebo. Está aqui uma coisa jeitosa está! Dez e meia da noite e nós aqui a ver mulheres nuas com touros...”
Cena 3.
Um arquitecto e uma das responsáveis pelo evento trocam ideias sob um cenário ardente. Projecções de imagens dos fogos do último ano decoram o salão.
“Tens que admitir que hoje em dia há o culto do esquisito. Existem lobbys poderosos na arte que controlam o que se deve admirar, o que se deve cultivar, o que se deve vender. E hoje em dia gosta-se do esquisito e ponto final. Ninguém se dá ao trabalho de produzir uma obra que se consiga verdadeiramente entender. Os artistas contemporâneos criam obras para si e acham-se no direito de não se justificarem perante ninguém.”
“Não digas isso T. O problema da arte contemporânea é que não é linear. Não é simples de se entender sem se estar devidamente contextualizado com a vida e obra do artista e com a época em que a obra foi criada. Não estando contextualizado dificilmente alcançarás o sentido da peça, entendes? Provavelmente vês uns cubos com uns riscos empilhados no chão e achas que é lixo. Mas se te explicarem o processo formativo e o raciocínio inerente, talvez tudo ganhe um novo sentido. Esse é aliás o sentido de toda esta exposição. As visitas serão obrigatoriamente guiadas para que toda a gente ganhe acesso a uma verdadeira interpretação e um real entendimento.”
“Isso são tretas. Hoje em dia, principalmente na arte contemporânea, o que vale é o nome do artista, o reconhecimento. Vês um quadro com uns relevos que induzem a pensamentos eróticos e quando te aproximas para ler o título, chama-se “ A avózinha faz pastéis de nata para o menino que chora”. Não é suposto a coisa ser minimamente lógica? O artista dá-nos um grande baile. Dá-lhe este nome como podia dar outro, recorre este desnexo e toda a gente admira porque foi o artista X que fez e porque é esquisito. E se é esquisito é porque é bom e temos que admirá-lo.”
“Mas porque é que generalizas? As coisas não se passam necessariamente assim. Estamos a falar de instituições reconhecidas mundialmente que atraem os melhores artistas e as suas obras mais significativas. Não me digas que isto é tudo uma farsa e estes artistas da nossa era nos estão a dar um grande baile. Generalizas demasiado. E nenhum de nós pode falar com certezas absolutas, porque não somos uns verdadeiros entendidos na matéria.”
“Minha querida, o único que sei é que impera o culto do esquisito. Vais ver um filme sem imagens e achas magnifica a realização, porque é esquisito. Dizes que gostas de U2 e olham-te com desprezo porque não conheces o XYHJONMS, aquele “fantástico grupo japonês que certamente conhecerás!”. Chega-se a um jantar e todos competem a ver quem é que conhece os artistas mais esquisitos e com nomes impronunciáveis. Estão-se a medir o tempo todo, entendes? No final de contas, minha querida, é tudo uma questão de pila artística e todos querem ter a maior!”