Capítulo dois
A primeira vez que fora convidado para conhecer a casa dela tudo correu de feição.
Receberam-no num ambiente misto de educação polida e de gargalhadas fáceis.
O tom cerimonioso rapidamente evoluiu para o diálogo fluído, para as discussões de política, para os amigos que não se sabiam comuns, para as histórias familiares.
Convidavam-no para as festas, para as viagens e para os passeios equestres , prazeres que até então desconhecia.
A tudo acedia com vontade e ela, orgulhosa, afagava-lhe a mão quando os olhares se distanciavam e finalmente se encontravam a sós.
Nada parecia indicar que algum dia a história chegaria ao fim.
O mundo dela era agora o seu, situação que este, de bom grado, aceitava.
E o mundo deste, outrora cinzento e rotineiro, jazia esquecido no seu estúdio mergulhado na penumbra, juntamente com os seus livros e projectos literários que jamais seriam concretizados.
Hoje, decorrida quase uma década, pouco restava da personalidade tímida e comedida que um dia entrara naquela casa de Azeitão.
A vida agora era a dois, ou melhor, a cinco, se incluirmos as crianças.
Os dias decorriam sem a busca vertiginosa da inspiração, tendo dado lugar a um seguro cargo de administração na empresa do tio dela.
As crianças preenchiam-lhe as noites e as lamúrias dela o seu sono.
Os passeios equestres foram proibidos pelo aparecimento precoce de hérnias discais, os sogros apontavam-lhe sistematicamente defeitos e o enfado de viver fora da cidade apodrecia-lhe o espírito.
Cansado, regressava fortuitamente ao passado, visitando o triste estúdio perdido de Santa Catarina e aí se deixava ficar, cabisbaixo e soturno, a pensar no que a vida havia feito dele, sem coragem para confrontar aquilo que ele havia feito dela.
1 comentário:
ai que depre!............ :(
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