segunda-feira, novembro 20, 2006

Capítulo dois



A primeira vez que fora convidado para conhecer a casa dela tudo correu de feição.

Receberam-no num ambiente misto de educação polida e de gargalhadas fáceis.

O tom cerimonioso rapidamente evoluiu para o diálogo fluído, para as discussões de política, para os amigos que não se sabiam comuns, para as histórias familiares.

Convidavam-no para as festas, para as viagens e para os passeios equestres , prazeres que até então desconhecia.

A tudo acedia com vontade e ela, orgulhosa, afagava-lhe a mão quando os olhares se distanciavam e finalmente se encontravam a sós.

Nada parecia indicar que algum dia a história chegaria ao fim.

O mundo dela era agora o seu, situação que este, de bom grado, aceitava.

E o mundo deste, outrora cinzento e rotineiro, jazia esquecido no seu estúdio mergulhado na penumbra, juntamente com os seus livros e projectos literários que jamais seriam concretizados.

Hoje, decorrida quase uma década, pouco restava da personalidade tímida e comedida que um dia entrara naquela casa de Azeitão.

A vida agora era a dois, ou melhor, a cinco, se incluirmos as crianças.

Os dias decorriam sem a busca vertiginosa da inspiração, tendo dado lugar a um seguro cargo de administração na empresa do tio dela.

As crianças preenchiam-lhe as noites e as lamúrias dela o seu sono.

Os passeios equestres foram proibidos pelo aparecimento precoce de hérnias discais, os sogros apontavam-lhe sistematicamente defeitos e o enfado de viver fora da cidade apodrecia-lhe o espírito.

Cansado, regressava fortuitamente ao passado, visitando o triste estúdio perdido de Santa Catarina e aí se deixava ficar, cabisbaixo e soturno, a pensar no que a vida havia feito dele, sem coragem para confrontar aquilo que ele havia feito dela.

1 comentário:

bébédamãe disse...

ai que depre!............ :(