terça-feira, maio 09, 2006

"La mano hábil que supla mi mano inútil, una mano que actúe según mi voluntad aún libre..."

A semana passada, em Valladolid, Espanha, um tetraplégico apareceu morto em sua casa.
Como habitualmente, a policia iniciou as investigações para determinar a causa da morte de Jorge León que, ao sofrer um acidente doméstico aos 47 anos de idade, viu a sua existência depender de uma máquina que lhe permitia respirar, já que de forma natural tal não era possível.
Essa mesma máquina que estava desligada, quando o corpo de Jorge foi encontrado sem vida.
Imóvel, à excepção dos lábios, com a respiração assistida e sem qualquer tipo de intimidade, Jorge era deslocado da cama para a cadeira de através de uma pequena grua e comunicava com o mundo através do blog que mantinha e no qual espelhava mensagens de desespero, clamando por ajuda para pôr fim à sua reduzida existência.
Uma história igual a tantas outras, uma quase-vida tão semelhante a outras milhentas quase-vidas.
Sem uma opinião totalmente estruturada e fundamentada acerca do tema da eutanásia, aventurei-me no blog de Jorge, onde os post não deixam margem para dúvidas para aqueles que duvidassem do seu desejo de pôr um ponto final à sua existência.
E se angustia conceber este cenário, mais angustiante é ler o diário dos dias deste homem.
Não resisto a questionar-me : tratando-se de um caso em que a pessoa se mantém lúcida e dona de um pensamento coerente, até que ponto o seu desejo não poderá ser acatado?
Até que ponto se poderá considerar inviolável esta não vida?
Até que ponto será ético negar-lhe ajuda para colocar um ponto final ao sofrimento que se converteu no modo de estar permanente? Onde reside a dignidade e a nobreza de gestos daqueles que voltam as costas e , por vezes de forma egoísta, prolongam o sofrimento daqueles que há muito deixaram de viver? O que é afinal a vida? Em que é que consiste ser humano?
Para as pessoas de formação católica compreendo que a discussão não ganhe estes contornos, nem coloque tantas dúvidas.
Afinal, para os crentes, todos somos peões dum grande plano que Deus traçou e só ele poderá decidir dar e tirar a vida.
Por este motivo, não pretendo deslocar a questão para o campo religioso.
A história mostra que a religião, ao longo dos séculos, nunca serviu para solucionar problemas, antes pelo contrário, sempre funcionou como ponto de controvérsia e disfarce para a prática das maiores atrocidades da Humanidade.
De um ponto de vista meramente racional, parece-me ilógico que alguém com o discernimento suficiente para se autodeterminar, ainda que fisicamente incapacitado, se veja impedido de pôr termo à sua vida, devido a uma lei que pune, criminalmente, aqueles que lhe prestam ajuda para o fazer.
Uma mesma lei penal que, cobardemente, prefere ignorar os testes ilegais de medicamentos que matam às centenas em África a troco de milhões de dólares para governos gananciosos; que pune com uma mão mais branda aqueles que, brutalmente e de forma animalesca, tiram a vida daqueles que querem e podem viver, face aqueles que praticam crimes económicos que tacitamente todos aceitamos; que não procura adaptar-se à sociedade actual e ao conceito de dignidade humana que o mundo ocidental tem vindo a adaptar;uma lei penal que se orgulha de ser laica, mas permanece amarrada a princípios católicos que não despertam sentido crítico; que não procura soluções intermédias e casuístas, acabando por gerar injustiças ao tratar de forma igual aqueles que são, efectivamente, diferentes.

1 comentário:

Charmless Man disse...

Confesso que não li o post inteiro, estou com trabalho...
A hipocrisia das sociedades modernas está altamente vincada em assuntos como a eutanásia. O caso deste Jorge será um dos expoentes máximos dessa hipocrisia:
O homem tem o desejo de morrer;
Está inválido à uma série de tempo;
Vive em aflição pura.
Quando morre, o que é que se faz? Tenta-se "apanhar" quem o AJUDOU.

C'est comme ça la vie!