Era um homem solitário, mas curiosamente não se sentia só.
Tinha tudo o que necessitava: as águas furtadas em Santa Catarina, mergulhadas na penumbra que os seus tectos esconsos forneciam, as antiguidades que coleccionava desde os dezoito anos, idade em que, pela primeira vez, explorara os antiquários de São Bento, os milhares de livros que, à falta de espaço, jaziam no chão, junto às janelas, à entrada, nos pés da cama, na cozinha e até na exígua casa-de-banho.
Em criança brincara sempre sózinho, alheio das travessuras dos irmãos que, perante a indiferença daquele pequeno ser, numa idade em que a lei do grupo impera, troçavam até à exaustão, enquanto lhe preparavam partidas cruéis à socapa dos pais.
Tudo suportou sem queixumes, sem denúncias, sem reacção.
A mãe, atenta e desesperada, recriminava-se por ter gerado tão estranha criança de olhar envelhecido.
Suspeitas de uma espécie de autismo foram levantadas, mas especialistas apressaram-se a afastá-las. Era uma criança silenciosa que provavelmente geraria um adolescente ruidoso.
Porém, contrariamente às expectativas, tal não sucedeu e ele foi-se desenvolvendo da mesma forma desprendida e solitária que o fizera até então.
Louvores choveram ao longo do seu percurso académico. No trabalho foi promovido sempre a um ritmo alucinante: o seu desempenho era brilhante, honesto, rápido.
Não participava nas conversas de café, não tirava pausas para fumar um cigarro, não perdia horas a navegar na internet.
Namoradas não se lhe conheceram. Aventuras também não.
À excepção de uma discussão com um alfarrabista que tentou vigarizá-lo, nunca se lhe conheceu qualquer ataque temperamental.
Regressava, religiosamente, a casa depois do trabalho.
Comia parcamente, ouvia Chopin e lia até altas horas da madrugada.
Por vezes, surpreendia-se a si próprio, questionando-se acerca do seu modo de vida, do seu isolamento, das suas rotinas inalteradas, pacíficas, mas simultaneamente doentias.
Todavia, rápido se desvaneciam as suas dúvidas existenciais, ao constatar que jamais conhecera outro modo de vida.
Tranquilamente, olhava o Tejo ao fundo e fechava o livro em mãos. Sorria, não com felicidade , mas conformado.
Nascera já tendo vivido, pelo que agora se dava ao luxo de simplesmente contemplar.
1 comentário:
Again,
escreve muito muito que gosto de te ler...
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