terça-feira, fevereiro 20, 2007

Não existem pessoas más, repetia vezes sem conta durante os exercícios de meditação que a Aurora lhe tinha recomendado.
O caminho passava por acreditar na pureza de sentimentos, na irrelevância da maioria das acções e na razão individual dos indivíduos.
A mesma razão que, teoricamente, os impede de optar pelo mau quando o bom está à mesma distância; pelo destrutivo quando a conciliação é a solução mais equitativa; pela saída que não lhes trará , a longo prazo, quaisquer benefícios para além da satisfação efémera das decisões egoístas.
Valores morais que admirava, mas a faziam sentir ingénua, vulnerável, errada.
Os exercícios traziam-lhe calma, exigiam concentração, mas não o conforto que procurava. Se a lógica que lhe exigiam era a opção responsável e a prevalecente, porque é que as ironias da vida lhe ensinavam que nada havia a mudar nas suas atitudes irreflectidas, pois o rumo dos acontecimentos não lhe competia?
Via os outros sorrir e tudo parecia estar sempre bem.
A ordem natural das coisas aplicava-se-lhes, caindo-lhes de feição como um vestido à medida. O seu trajecto, porém, apresentava-se mais conturbado, com curvas mais sinuosas, com entroncamentos que exigiam cautela.
O barulho do gato da vizinha despertara-a do transe. Sentia as pernas entorpecidas devido à posição na qual permanecera durante duas horas.
Na rua, o sol já espreitava tímido, tingindo de dourado as folhas perdidas no jardim.
Desligou a música, atiçou o fogo da lareira e esperou que a sensação de alheamento lhe permitisse regressar ao ambiente da sala.
Apesar das dúvidas, o conselho de reflexão de Aurora surtia efeito.
Não iria mudar, sabia-o, mas sentiu-se, pelo menos naquele instante, mais apta a aceitar.

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