quarta-feira, maio 30, 2007

Inspecção ao local


A verdade é que a razão cede perante os afectos.

Sem excepções, sem reservas.

Apontem-me um pai que não é cego para apontar os defeitos de um filho, uma mãe cujos olhos lhe permitem ver a fealdade das acções das suas crianças, um irmão que consiga criticar, objectivamente, as decepções e desgostos que outro lhe causou, um filho que consiga romper o véu da admiração dos pais e encará-los sob luz crua das imperfeições.

Como entender, então, a dor da perda de um ente querido?

Como aceitar a quebra de uma união que se sobrepõe à razão, ao bom senso e à razoabilidade?

Na estrada que habitualmente (em dias de leveza) nos conduz à praia, realizou-se, esta manhã, a inspecção ao local do crime.

Peritagem, chamam-lhe os técnicos.

Prova dos nove, chamam-lhe os leigos.

A mãe sentou-se à sombra e ouviu, através de testemunhos enviesados e contraditórios, a descrição do acidente que conduziu à morte do filho.

Aquele filho que, provavelmente, nem sempre seria carinhoso, nem sempre lhe teria retribuído a generosidade e dedicação; o filho que pese embora imperfeito como nós, aos olhos da mãe surge incólume, imaculado.

O filho que, na noite maldita, resolveu exagerar no álcool e conduzir, despreocupadamente, na estrada mal iluminada, olvidando as luzes da mota.

O filho que sucumbiu ao embate com o veículo manuseado pelo arguido, cuja conduta, independentemente de merecer ou não censura, foi carrasca e definitiva quer para o que partiu, como para os que ficaram, obrigados a aprender a viver com a perda, com angústia, com a saudade e o desnexo da ausência.

A mãe permaneceu sentada, apertando as mãos com força para conter as lágrimas que os seus olhos espelhavam

A irmã reagia, pois dela outra atitude não se esperava.

Não querem dinheiro; não querem compensação pelos danos morais e patrimoniais.

A companhia de seguros adiantou-se ao arguido e aos poucos o dinheiro foi-se, enquanto aguardam o dia da justiça, o dia em que esperam que a morte do filho ganhe sentido e seja justificada.

Aos olhos delas, o carrasco não tem outro nome; está condenado à partida, merece um castigo exemplar.

A cada sessão reacendem as memórias, recordam o momento, revoltam-se com a partida, reavivem a dor.

Pedem apenas justiça.

Pedem que o tribunal a faça, pois outra coisa não lhe compete.

A mãe não vê o que os olhos dos outros enxergam. Não sente como nós, os técnicos, os que analisamos.

Ela alega apenas querer justiça.

Sem saber ilude-se.

Quanto mais tempo passo em tribunais, mais convicta fico que justiça, se a alguém compete, é a Deus.

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