"Na altura, adoptara a personagem inconscientemente, mas hoje reconhecia que a tinha moldado, aperfeiçoado e usado como subterfúgio para os seus maiores medos, para as suas ligeiras frustrações e, essencialmente, como desculpa para as imperfeições do seu feitio.
Assumir os princípios que criara para o desempenho de tal figura, era agora uma questão de orgulho, um exemplo de coerência e determinação, o que nem sempre a conduzia aos melhores resultados ou a levara a optar pelo melhor caminho.
Sem se dar conta, porém, as vidas dos que a rodeavam evoluíam, alheias aos horrores inconfessáveis que frágil personalidade desta não queria confrontar, alheias às recusas e às desconfianças que a personagem que ela adoptara transportava na bagagem.
Sob a máscara desta, fingia-se segura e até chegava a crer-se completa.
Com veemência, afirmava a natureza que julgava ter e negava ser capaz de a contrariar.
Esquecia, porém, que a peça já não era a mesma, que as falas haviam sido substituídas e os actores com quem, agora, contracenava deram outros que mereciam um tratamento diferente.
Hoje as suas deixas já não fazem sentido e caem por terra como as muralhas que um dia foi forçada a erguer.
Entre gargalhadas e vinho tinto, reconhecia que, em breve, chegaria o dia em que o disfarce seria abandonado, por dele já não carecer.
Até lá, porém, pisava o palco e agradecia os aplausos que a faziam acreditar que ainda se encontrava na ribalta."
1 comentário:
Pois.
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