quarta-feira, dezembro 19, 2007

A memória da viagem

Há três tipos de pessoas que viajam por lazer: os viajantes, os turistas e aqueles que a quem nunca deveria ser-lhes permitido fazê-lo.
O viajante busca experiências que acredita serem únicas; evita o percurso dos guias e os lugares de visita supostamente obrigatórios.
Não se faz rogado a misturar-se com os locais e com os seus costumes, ostentando, até, um certo brio quando por obra do acaso é confundido com um destes.
Come mal, dorme pouco, orgulha-se do barato e do extravagante e adopta as novas realidades como se da sua se tratassem, com humildade e abertura de espírito.
Por outro lado, colecciona países e experiências como se de cromos se tratassem; rabisca o nome de cafés anónimos em cadernos putrefactos que guarda esquecido na casa que por nascimento ou escolha lhe coube, a qual decora com artefactos, objectos inúteis e outros troféus que lhe trazem aromas de outras paragens.
No viajante encontramos, pois, um paradoxo: por um lado um interesse e uma curiosidade aguçada que não encontramos, por exemplo, no simples turista, mas por outro lado, a vertente recordista dos cromos coleccionados e uma certa massificação dos países visitados.
Relativamente ao turista, a análise afigura-se mais simples.
O verdadeiro turista é sistemático; organiza itinerários e reparte o tempo disponível por cada uma das visitas consoante o seu grau de importância.
Interessa-se q.b, mas confia unicamente nos guias que transporta, interroga as gentes locais e durante uns breves momentos quase que consegue acreditar que faz parte da sua civilização.
O excesso de bagagem, as máquinas fotográficas e a limitação temporal das férias do turista denunciam-no, porém, remetendo-o à sua condição natural.
Conhece menos do que o viajante, é certo, mas confortavelmente se contenta com o superficial, com a realidade que uns olhos menos distraídos conseguem captar e posteriormente guarda pequenos souvenirs para poder relatar, a quem o visita, as belas estâncias no estrangeiro.
Fatal como o destino é encontramos algum dos membros da terceira classe: os que nunca deveriam viajar mas que o fazem, fingindo-se à vontade num ambiente que desde logo rejeitam.
Antes de mais são privilegiados, mas não o sabem, assumindo como um direito natural o facto de terem acesso a um tipo de conhecimento vedado a muitos desfavorecidos.
Por outro lado, os que nunca deveriam viajar e o fazem, jamais relaxam. Comparam, ainda que mentalmente, cada realidade distinta, acabando, inevitavelmente, por concluir que no país onde nasceram e vivem, de facto, as coisas correm melhor, parecendo-lhes abjectos todos os hábitos que inexistem no seu país de origem.
A diversidade cultural, incentivo natural à descoberta e à adrenalina do viajante, enfada aqueles que nunca deveriam viajar. Perante papaias sonham com cozido à portuguesa; perante um pequeno-almoço de cereais almejam french toasts e quesadillas.
Jamais estão satisfeitos ou controlam as suas reclamações (fundadas ou nem tanto), mas não acabam com as expectativas defraudadas, pois à partida não as têm.
Secretamente, apenas viajam para confirmar que viajar não vale a pena e de certa forma legitimar o facto de nunca terem saído da pátria mãe.
Pelo planeta fora, cruzam-se estes três protótipos de passageiros, os quais coincidindo no mesmo local geográfico, não deixam de olhar-se com desconfiança própria dos desconhecidos.
No final, a certeza de que não obstante a abordagem adoptada, todos se reportarão às viagens realizadas com saudade e com orgulho.
Os sorrisos maliciosos da verdadeira versão dos acontecimentos ficarão apenas para aqueles com quem partilharam o momento em que as suas vivências se tornaram mais ricas.
Ainda que não o soubessem.

1 comentário:

sara disse...

Há ainda os que viajam só para dizerem que estiveram "lá". Conheci um Brasileiro que, honesto como nunca imaginei possível, afirmava sem vergonhas que só viajava para depois contar e mostrar que teve em todos os lugares (quantos mais melhor), e que nem lhe passava pela cabeca apanhar um aviäo sem máquina fotográfica. Sem provas, sem registos, ninguém acreditaria e nada faria sentido. Interessante, näo?