sexta-feira, setembro 10, 2004


"O olho do tempo", Salvador Dalí


TEMPO: o drama/alíbi do sec.XXI

“Estou cheio de pressa. Não posso falar muito. Diz-me apenas a que horas passo aí para apanhar as minhas coisas.”
“Nem isto podes fazer com calma? Já viste que no final é tudo uma questão de tempo? De minutos, segundos, horas?”
“Deixa-te de tretas. Nem todos temos a tua sorte. Ao contrário de ti eu não disponho de tempo para me dar ao luxo de desperdiçá-lo. Não o comando a ele, ele comanda-me a mim !”
“És ridículo! Não te desculpes com o tempo. Nous sommes ce qu´on fait meu querido... Não és tu que dizes adorar Sartre ? De tanto ler bem que podias ter aprendido alguma coisa.”
“Já percebi que hoje estás para discussões, mas eu não estou para isso. Como te disse tenho pouco tempo. A que horas posso passar ai? A partir das oito posso de certeza, senão só se passar por ai por volta da hora do almoço.”
“Vem quando quiseres. Está tudo como deixaste. Se eu não estiver em casa a D. Isilda está de certeza e dá-te as tuas coisas.”
“Está certo. Passo aí por volta das oito e um quarto. Aproveito e levo-te os cd´s que tenho no carro. Olha avisaste o João que eu não te vou acompanhar ao casamento?”
“Já o avisei. Ele disse que tem mesmo pena que não vás. Ainda por cima avisar assim sem mais, em cima da hora... Com esta historia do casamento mal respira, diz que não tem tempo para nada. Como sempre falta de tempo... Em vez de crédito, os Bancos deviam conceder minutos ás pessoas com uns spreads mínimos!”
“Talvez seja o negócio do futuro, quem sabe? Bom, tenho uma reunião agora e já estou atrasado. Então até logo. Se te lembrares de mais qualquer coisa que não te tenha devolvido diz. Vai ser complicado encontrar outro dia para passar aí. Beijinhos.”
Desligaram.
Ele guardou o telemóvel no bolso. Ela atirou o dela para cima do sofá. Ele seguiu lentamente até ao carro e sentiu-se aliviado. Ela acendeu um cigarro e fumou-o languidamente, pensando que tinha conseguido fazê-lo sentir-se culpado. Afinal não havia reunião nenhuma. Ela até tinha assuntos para tratar, mas estava sem cabeça.
Agora tinham todo o tempo do mundo, mas sentiam-se incapazes de fazer seja o que for.“Não faz mal”, pensaram, “o que não se fizer hoje faz-se amanhã... se tiver tempo”.

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