quinta-feira, abril 21, 2005

Erasmus (onde fica?) Por Madalena Callé Lucas

Na maior parte das universidades começam agora a fechar as pré-inscrições para o Erasmus. Mas, afinal, o que se vive neste programa internacional de câmbio de estudantes?
Diga-se, em tom adoçante de leitura, que esta viagem de um semestre ou de um ano inteiro, é bem mais do que uma experiência de estudos enriquecedora, é uma longa descoberta de nós mesmos.
Se me perguntarem o que me lembro do ano de 1999, por exemplo, tenho que pensar mais do que uns instantes, arranjar despertadores de memórias, interligar acontecimentos, e finalmente consigo agarrar uma visita, uma festa, uma tristeza, uma decisão com mudança de rumo, um êxito, uma desilusão. Marcadores e post-its na minha história.
Agora, perguntem-me sobre o ano de 2000/2001, e eu sei os contornos dos dias num ápice, a maior parte pelo menos, recordações sem película que as imortalize e me faça lembrar, ou, sequer, que me deixe habituar (por estar pregada na parede e acessível a uma observação diária). Rapidamente, em qualquer lugar, consigo deixar-me levar, outro país, outra cidade “minha”, e ao chegar lá, sinto o cheiro, oiço a voz de com quem falo. A intensidade não diminui com os anos. Vinho tinto.
Fico no limbo (onde ficamos todos quando “quase-adormecemos” conscientes).
É no avião que sinto o primeiro impacto, quando, no ar, sou transportada a uns tempos longe do que estou habituada. Os olhos inchados das despedidas (provisórias – porque volto no Natal e já o sei), caem sobre si próprios, e mergulhados no cansaço dos preparativos, reagem. Flash’s surtidos do meu recente presente, do que deixei, de quem ficou abraçado a mim. Do último verão. Dos últimos meses. Da vida inteira. Momentos retratados que sem eu saber, vos roubei, a todos! E ali, de garganta em nó, corto lentamente um cordão umbilical.
Numa “semi-nudeza” chego à cidade decidida (e no meu caso, por mim escolhida – não fosse a sua posição geográfica). Turim (Itália). Nunca lá tinha ido. Destino desconhecido (vi postais). Um ano sabia eu. Quatro noites reservadas num hotel. Nada mais.
Manhã n.º 1. Eu já vinha avisada para o embate. Choque frontal. Mas, talvez pela consciência de que o que me é mais especial estar a um telefonema de distância e a um passo do meu pensamento, levantei-me da cama como se tivesse ganho um prémio. Curiosidade. Queria encontrar... pequeno-almoço para começar, depois casa para viver, e o mais que se proporcionasse por aí fora. E, melhor que tudo, não estava a fugir de nada. Fui porque sim (e só agora tinha tido tempo para responder a esta pergunta).
A língua nova foi sendo entendida. O embalo de um concerto de Nicola Conte.
Madrugando por hábito, e por não encontrar casa, corri a cidade de lés a lés, mapa decorado, via a via. Fui recebida por um padre num convento, quando as reservas do quarto se esgotaram. Não parei aí, já me arriscava a falar italiano. Palavras tortas.
Segui pelo instinto da necessidade em exploração das imobiliárias, cafés, pizzerias, universidades, enfim, da cidade. Aprendi-lhe as curvas, e quanto mais me conseguia desenrascar mais parecia que me tinham aprisionado num filme japonês com guião russo. Delicioso!
Mas nem tudo é tão fácil como possa parecer. Neste desatino de organização, de papelada escrita espalhada por todas as carteiras que eu tinha, cruzei-me com desistentes, que de elevado calibre de sociabilidade e “desembaraçadez”, foram derrotados pelo início e pela saudade. Não me foi possível convencê-los. O espírito tem que estar aberto a esta aventura.
Viver sozinha. A meias. Mas sozinha. Com o meu horário, a minha desarrumação, os meus cozinhados. A minha loiça e a minha roupa para lavar (na loja das máquinas a moeda, a três quarteirões de distância).
Instalada que estou, e a partir daqui rumo à estabilidade na confusão. Criam-se caminhos próprios, favoritismos. Conhecem-se “As” pessoas, as diferentes origens. Trocadilhos. Somos sozinhos, que, na mesma situação, se juntam. As jantaradas revezam as casas, como um culto. Metade dos presentes não se conhece. Comunicamos todos em italiano. Não têm medo de se conhecer. Do ponto zero (porque sem referências) conquistamo-nos uns aos outros. Despistam-se os preconceitos, os tabus mais severos e escondidos nas naturais pressões da sociedade (a que pertencemos) e da família que integramos (e nos dá o seu melhor). Sou mais eu do que nunca.
O que tenho por garantido (os valores) é em várias situações varrido, varanda fora. Ora, aqui jaz a definição de relatividade. Não somos iguais. Mas aprendemos uns dos outros. Deixamos de julgar. Acabamos por aceitar com naturalidade que os nossos valores “absolutos” são distintos. Ordem sensivelmente genética. Como o é a cor dos nossos olhos, da nossa pele. Aí está o intercâmbio. Na partilha do que nos está intrínseco, embebido em genes portugueses. Da admissão!
Instintivamente seleccionamos e permitimos (com restrições) que, da junção de diferentes raízes, nasça uma “família Erasmus” (Como lhe chamava o Santiago). Entre nós os laços íntimos de uma amizade de dez anos.
Meditei sobre tudo, especialmente nos comboios. Reflecti como nunca tinha feito. Tropecei em significados novos, porque vi de longe a minha vida até aí. Tornei-me clara. Receptiva ao que me é desigual. Curso intensivo. Prova de gelo ao egoísmo. Atentados fulminantes às paisagens bonitas que eu já conhecia, que reuni num catalogo mental. Perdura.
É Fevereiro, já sou parte integrante desta forma de viver, de viajar sem bagagem, de comer enlatados, de não planear. Já conheço os cantos e os fascinantes. A língua está dominada. A contagem torna-se decrescente, a partir de agora. Acabará. Tem prazo de validade.
Nesta fase, dá-se uma importante mudança que se prolongará indefinidamente. Filtramos o que de mais essencial nos é permitido viver. Separamos o trigo do joio e cingimo-nos ao principal, como quem sabe que irá morrer (em data certa) e aproveita o tempo que lhe resta. Uma emoção forte por dia, certamente. Conversas puras.
Até que a data chega. O fim.
Vim para Portugal de carro, afastando-me lentamente de “casa”. Sem sono, nem fome. Sem perceber. Regressava. Já sabia. O concerto que marcava o último dia já tinha acabado. Os aviões tinham levantado. A mezzanine estava desmontada.
Os últimos conselhos, os últimos elogios. Os últimos olhares, especados uns nuns outros. Despedidas (a maior parte para sempre). Guardo sete peças de xadrez, das quais não abdico. Mantenho intactas as amizades que, percebi, são eternas.
Abrigo os horizontes novos e as suas ramificações espalhadas pelo mundo todo. Protejo esta nova versão.
Não vale a pena chorar porque o mais valioso trazemos sempre connosco.
Demorei uma semana até chegar a Lisboa. Parei em Barcelona e Madrid. Respirei fundo.
Passaram três meses, desde a minha chegada, e eu erguera à minha frente um muro escuro, muito alto. Inexplicavelmente, melhor preparada para manobrar a vida, com menos amarras, mais informação, mais maturidade, e sem qualquer evidência aparente, deixei de aceitar a “inércia” plantada à minha volta. Triste e insuportável tantas vezes estava bloqueada numa pequena revolta.
Até que, apurado o drama, que é de retorno, e a razão, que é falta de variedade de sensações, decidi combater os despropósitos, as variações de humor, a arrogância, e o descontentamento “idiótico”, que pelo que me apercebi atinge todos os Erasmus “recém-regressados”.
Não devia ser permitido. A conclusão Erasmus é oposta. Um ano é uma ínfima parte da vida (espero!), e aquele ano é aproveitado como sendo finito, desde o princípio (e mais a partir de Fevereiro). Dessa forma é alcançada a intensidade e a sinceridade com que o vivemos. As escolhas, das pessoas que nos acompanham, dos programas que fazemos, das cidades e aldeias que visitamos, baseiam-se, exactamente, na limitação da nossa disponibilidade. Não é ilusão.
Assim devia ser encarada a vida inteira, que tem fim, só não tem data e hora marcada.
Essa será, talvez, a grande lição.

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